10/17/2023

Por de trás dos olhos - Memória de Árvore

 Memória de Árvore – CEEDV 

Entrar de mansinho, saber onde pisa, escuta aberta, perceber os caminhos. Assim entramos no CEEDV – Centro de Ensino Especial para Deficientes Visuais. Na primeira visita observamos o espaço, na segunda observamos as crianças brincando no parque, na terceira propomos uma atividade: Um percurso poético na natureza.

Neste ano com o projeto Memória de Árvore estamos com o PAPE – Programa de Atendimento Pedagógico Especializado, que atende crianças de 4 a 10 anos sob a coordenação de Jaqueline.

Para minha surpresa, que estou envolvida com o CEEDV desde 2018*, desta vez conheci verdadeiramente seu quintal, eu já conhecia a horta e o belo espaço que a envolve, e por isso pedi para a coordenadora me levar lá, mas simplesmente abriu-se um mundo, o quintal é uma Agrofloresta, aos cuidados do professor Antônio.

Entre bananeiras, milho, açafrão, mandioca, íris... o encantamento foi certeiro quando levei Rita de Castro (diretora da montagem) e Rossana Alves (orientadora do movimento somático). Era ali que tínhamos que fazer nossa primeira vivência com as crianças.

Qual é a nossa percepção quando caminhamos de olhos fechados, depois que conseguimos ultrapassar o medo e a insegurança e podemos dar a atenção aos outros nossos sentidos? Você já experimentou isso? Eu brinco disso as vezes, principalmente dentro de casa de noite. Mas em uma agrofloresta, apenas por segundos pude experimentar.

Abrimos a roda. Formamos uma roda de esteiras e tecidos em uma clareira, entre algumas árvores, muito perto da plantação de açafrão, íris, gengibre, e logo adiante um belo caminho em que predominavam as bananeiras. 

Na roda convidamos crianças e educadoras(es) a ouvir suas respirações e o coração antes de começarmos a caminhada. E as convidamos para manter a conexão com suas respirações e o coração enquanto caminhavam.

O Percurso era curto, mas havia tantas novidades em volta, as educadoras(es) que se propuseram a fazê-las tocar, pudemos juntas(os), proporcionar uma experiência emocionante. O rostinho da criança que tocava a interminável folha de bananeira me tocou profundamente. No final do caminho sombreado havia uma clareira bem ensolarada, algumas educadoras tinham o impulso de retornar imediatamente para protegê-las do sol, pedi, as deixem um pouquinho sentindo o sol. E uma das crianças com um sorriso no rosto dizia “É macio!”.

Eu estava na voz de comando que guiava o percurso, não eram ordens, eram convites. Algumas perguntas, sobre se ainda percebiam sua respiração, seus corações.” E agora, mudou a luz? Percebem o sol?” O calor macio da criança me encantou. 

Algumas das crianças possuem baixa visão, outras são totalmente cegas e muitas delas tem o espectro autista. 

O curioso para mim agora, enquanto eu escrevo este texto, é que tenho pouca memória visual da vivência, ficou para mim mais a sensação, o encantamento, a emoção, essas crianças nos ensinaram muito naquele dia.

Voltando á roda, eu já havia explicado antes que eu contaria uma breve história após a caminhada, separamos anteriormente algumas folhas que disponibilizamos neste momento para as(os) professoras(es) e pedimos para que nos ajudassem conforme ouvissem a história, Rossana, foi a auxiliar que fazia em mim o tato que sugeríamos que elas fizessem nas crianças durante a história.

“Entro descalça em um caminho de terra, a pele do meu pé recebia o chão, assim como a terra recebia todo o meu corpo. Percebo presenças em volta de mim, até que sinto um carinho delicado de folhas que passam tocando meu corpo. Sinto uma brisa suave que sopra em meu rosto, pauso...”

De improviso, narrei esta história que eu havia criado dias antes, enquanto pensávamos nesta vivência. Enquanto eu narrava, caminhava no centro da roda, quando me percebi, eu estava de olhos fechados. É incrível de como naturalmente fechamos os olhos quando queremos perceber com os nossos outros sentidos. E o quanto, fechar os olhos em pé ou principalmente caminhando, nos traz para o presente.

Estar presente, este é o convite. Imagine a sua vida de olhos fechados e o quanto de presença teria que ter para estar no mundo. Estas crianças cegas têm muito a nos ensinar. O nível de percepção aguçada de todos os outros sentidos. Agora abra os olhos e veja, o nível de impossibilidades que nossa estrutura social oferece para estas pessoas estarem no mundo.

Quando terminamos o percurso, uma das crianças com seus 9 anos de idade, falou, “Quero conhecer mais!” Pare quem vê com as mãos, tocar um ambiente como uma agrofloresta é como ler muitos livros ou navegar pela internet buscando plantas. 

Ver com as mãos é o que faríamos todos os dias a cada toque, se déssemos nossa atenção ao toque. Mas ainda sim, sem esta atenção, tudo o que tocamos nos registram memórias. Pois o toque é uma via de mão dupla, se tocamos, somos tocados.

Possíveis caminhos se plantam a cada dia.



“o brinquedo proveniente da experiência livre da criança em contato com a natureza é nossa porta de entrada rumo a essas reservas simbólicas da produção humana.” (51)



*o grupo Psoas e Psoinhas desde 2018 realiza projetos com o CEEDV, nestes anos anteriores foi com o Precoce, programa do CEEDV que atende bebês de 0 a 3 anos. O grupo levou apresentações de Amana – dança para bebês, oficinas de educação somática para educadoras(es), encontro de movimento com mães e bebês e conversa entre profissionais e famílias nos projetos “Inclusão desde o Berço” e Conexões pelo Movimento”.


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