Do Movimento Interno ao Corpo Animado
Body - Mind Centering® e o corpo pré-expressivo do ator e manipulador
Por Katiane Negrão
Sou uma artista
do corpo, minha trajetória inclui a dança contemporânea, contato
improvisação, teatro,
teatro de animação e
o canto. A educação somática vem integrar todas estas expressões artísticas em sua base, no corpo
pré-expressivo, no antes de querer ou fazer algo, estar comigo mesma.
Escolhi a
formação como Educadora do Movimento Somático em Body - Mind Centering® atraída
por este convite, de darmos um tempo para si mesmas, de demorar-se. Recém
formada, é apenas o início de uma jornada, pois como diz Bonnie ao introduzir
suas apostilas, “ Para compreender e assimilar todo o conteúdo serão
necessárias, durante os próximos anos, muitas horas de estudo e exploração
individual dos princípios e técnicas aqui descritos.”
Dentre as minhas áreas de atuação, meu
trabalho artístico e minha pesquisa como educadora do movimento tem se
desenvolvido principalmente através da TATO Criação Cênica, cia da qual sou integrante
fundadora. Há 11 anos desenvolvemos uma pesquisa em teatro de animação corporal
(teatro feito com partes do corpo, onde o próprio corpo é o boneco),
dramaturgia física (não verbal), acompanhada de uma
dramaturgia sonora vocal (fala dos personagens em grammelot (linguagem inventada) e trilha
sonora executada ao vivo).
Por termos
uma linguagem muito específica, desde o início do grupo somos convidados à ministrar oficinas. A primeira
delas, que eu e Dico Ferreira vimos desenvolvendo até hoje, intitula-se “Em Busca de
Uma Dramaturgia Física- no teatro de animação”. A outra, desde que iniciei a
formação em Body - Mind Centering® , “Do Movimento Interno ao Corpo Animado - consciência corporal para bonequeiros”.
Ambas partem de um preparo de consciência corporal do ator/manipulador, mas nesta última o foco é o corpo pré-expressivo do ator
manipulador e a
conexão com o corpo animado (boneco).
O processo
didático em busca deste corpo consciente, sob minha responsabilidade na Tato,
vem se modificando nestes anos, se construindo conforme as experiências pessoais de escuta corporal
nas abordagens que tenho me dedicado. Sob a ótica de um aprendizado adquirido
das professoras e professores de Body - Mind Centering® , e que pra mim é de extrema importância na relação
professor/aluno: “passe
a diante o que faz sentido pra você”. O que faz sentido para seu corpo, o que você experienciou e absorveu, algo que
de fato faça parte do seu aprendizado integral, ainda que este não seja um
ponto de chegada, mas o ponto de partida para um caminho de descobertas.
Dos princípios
do Body - Mind Centering® , os
Padrões
Neurocelulares Básicos (PNB) tem sido parte integrante de minhas propostas de
investigação. Os PNB são padrões de movimento inerentes ao sistema nervoso,
numa perspectiva evolutiva do desenvolvimento ontogenético (bebê humano) e
filogenético (do reino animal). A Vibração
e a Respiração Celular, os primeiros destes padrões, são a base de construção
de meu corpo pré-expressivo como artista e das minhas propostas em oficinas.
A respiração
celular em si é este
convite ao estar junto, o estar com suas próprias células, nos proporciona um
estado de presença que permite percebermos a parte e o todo. Respirar
integralmente e ter consciência
de cada célula nos
permite mapear o corpo como um todo, perceber onde há menos fluidez e oxigenar
onde está mais rígido.
A
respiração celular também contribui para o nosso fluxo
de energia, para a fluidez e percepção de nosso campo vibratório, dentro e no
entorno do corpo. Inerente à todos
os seres deste planeta, a Vibração faz parte de todos os corpos, todos somos
feitos de onda, todos somos atraídos pela força da gravidade para o centro da
terra, e todos temos o rebound (retorno, a repercussão) de uma outra força,
atração e repulsão constantes. Se não fosse esta força
anti-gravitacional, estaríamos
simplesmente achatados na terra pela gravidade.
A prática da
consciência destes dois Padrões (PNB), Respiração Celular e Vibração, tem
ampliado significativamente a minha propriocepção, que é a capacidade de
percepção do corpo no espaço, a sua posição e orientação. Pratico sempre respiração
celular antes de
entrar em cena, busco esta percepção durante a cena e é a base para eu iniciar
um processo de oficina e/ou investigação.
Tendo como
suporte estes dois padrões, numa oficina, sigo com o Padrão Irradiação Umbilical, e quando o tempo permite,
considerando a carga horária diária quase sempre restrita, utilizo também os
padrões de transição, Pulsação e Esponja.
A Irradiação
Umbilical, nos dá a consciência
de nosso centro (umbigo) em conexão com nossas extremidades (cabeça, cóccix, mãos e pés). Através do constante
movimento de condensação e expansão de todo o corpo, vivenciado quando
centramos-nos em nossa respiração, ou em nossa pulsação, o bombeamento dos
fluidos que percorrem todo o nosso corpo, podemos experienciar nossa tridimensionalidade integrando a percepção de centro/
periferia, expandida
da célula ao entorno do corpo.
A partir
destes princípios, exponho a condução de uma aula: Inicio com um relaxamento em
que as pessoas estejam deitadas em
posição de estrela, ou em algum momento as
convido para esta posição, para que levem suas consciências à respiração celular do corpo como um todo
e tomem consciência
de seu centro (umbigo), e que centrando corpo e mente, tracem os caminhos de
conexão deste centro com cada extremidade, uma por uma, sempre voltando para o
centro e em seguida, a partir da percepção da pulsação, deixem que esta se
amplie do micro movimento até chegar
ao macro, percorrendo movimentos contínuos, ao traçar retas, diagonais e
triângulos interligando estas extremidades no ciclo entre ceder/empurrar,
trazer/alcançar.
Deste
percurso, muitas vezes já conduzo para a posição em pé e trabalho estas relações
buscando o aterramento dos pés em conexão com a calda (cóccix) que aponta para
o chão, o centro que expande tridimensionalmente para deixar fluir o rebound retorno, repercussão) da força
anti-gravitacional da terra, até e
para além da cabeça que flutua (alcança) e as mãos integradas ao braço/escápula/clavícula/coluna/centro,
explora, sem perder o seu eu (o olhar interior), o que está em volta, seu
espaço interpessoal, a manipulação de sua própria energia/espaço até chegar no outro (objeto e/ou ator
e/ou espectador).
Este é um exemplo de um processo de
preparação corporal, para daí partir para qualquer outra coisa, seja construir
um personagem, uma partitura de ação, a prontidão para o jogo ou improviso,
criar uma forma animada ou animar um objeto. Estar consigo mesmo para poder
estar inteiro para e com o outro. Acordar a escuta corporal para que o corpo
pense, mova-se, responda aos estímulos por si só, pronto, relaxado e atento para
o improviso.
A percepção
radial do corpo é, não só importante
para o ator/manipulador, mas para como compor o corpo do objeto/boneco, mesmo
que este seja uma fragmentação de seu próprio corpo, como fazemos na TATO. Esta
percepção do centro, base aterrada (ceder/empurrar) e cabeça que flutua
(alcançar/trazer), é essencial
para que o manipulador trace uma percepção de si mesmo e encontre uma boa
posição com base, fluidez e mínimo esforço, para que sua energia flua de seu
corpo para o boneco e ele possa posicioná-lo e movê-lo com a mesma eficiência, partindo dos mesmos
princípios.
Ceder/empurrar
e trazer/ alcançar são princípios que dão suporte à todos
o Padrões Neurocelulares Básicos relacionados aos vertebrados, ou seja, à nossa fase pós uterina. Para
empurrar-se é necessário
ceder o corpo e assim sentir o retorno da força anti-gravitacional, possível
quando nos entregamos de fato à gravidade.
E quando alcançamos qualquer movimento no espaço, se não o interrompermos,
inevitavelmente o trazemos de volta pra si, de encontro ao nosso eixo axial, ao centro do corpo.
Quando incluímos estes princípios,
ceder/empurrar, alcançar/trazer,
em qualquer tipo de treinamento, partitura de movimento, do ator, manipulador ou não, ou do dançarino,
podemos observar o quanto ele cria uma dinâmica de mínimo esforço na eficiência do movimento.
As práticas
do Body - Mind Centering® são em sua essência
propostas de escuta corporal, vincular este aprendizado à uma outra prática que exige mais
da atenção externa, da prontidão, do jogo, é o caminho de pesquisa que tenho
me proposto para a preparação do artista cênico. Esta capacidade de não
desconectar-se de si e utilizar esta presença para estar com o outro, manter o
olhar interno com a atenção externa ou mantermos a atenção interna com a visão
do que está em volta. A relação simultânea em conexão consigo mesmo e o outro.
Encontrar o
equilíbrio desta relação em cena, considero uma grande chave para conquistar um
estado de presença, atenção interna simultânea à externa. Como artista cênica
tenho exercitado esta relação principalmente nas apresentações do espetáculo
Tropeço *. Espetáculo de teatro de animação que possui duas personagens, cada
uma delas são as mãos de um ator, apesar de um roteiro bem definido, dentro da
partitura de ações nos damos espaço para o improviso. Estou em cena aberta ao
jogo com o público e com a outra personagem, e ao mesmo tempo praticando
respiração celular, mapeio como está o meu corpo como um todo e posso perceber
se estou criando algum apoio desnecessário que possa estar impedindo o meu
fluxo de energia e fluidez de movimento até as mãos. Sinto minha vibração do
meu centro para periferia e busco expandi-la por todo o espaço, assim como o
som que emito vocalmente, sinto que ele vibra em todo meu corpo e sai pelas
minhas mãos personagem e expande-se por toda sala.
Este é um caminho
de pesquisa individual ao qual tenho-me proposto neste espetáculo, em busca do
estado de presença e da reverberação da minha energia como artista no espaço
circunvizinho. Esta prática também está vinculada a uma outra abordagem
somática que pratico desde 2007, o método Co.R.Po, Consciência Resperatória
Postural, de Wilson Sagae.
A educação
somática inserida em processos criativos, já pode ser um lugar comum entre
muitos profissionais da dança, entre alguns processos para atores, mas ainda
está bem distante da maioria dos bonequeiros. Levar a importância da consciência
corporal no teatro de animação
é um dos meus
focos como artista e educadora do movimento. Esta distancia se dá devido à própria história, a maioria dos
bonequeiros derivam das artes visuais, o
foco está na construção,
no boneco e não no próprio corpo. Ainda que assim podemos ver bons resultados, é comum espetáculos com bonecos
lindos e manipulação pouco convincente.
Tenho
percebido bastante diferença nos resultados em oficina. Quando não dedica-se a
um preparo de corpo antes de um improviso, o aluno/animador vai com certa
ansiedade para o boneco, o movimenta demais, como se com muitos movimentos
alcançasse sua expressividade. Após um trabalho a partir da educação somática,
como o exemplificado anteriormente, o encontro com o boneco se dá diferente,
este apresenta-se mais vivo, com menos movimentos, mas cada gesto se torna
grande, podemos perceber a sua
respiração, seguramente porque o animador foi estimulado a estar ciente da
própria respiração e em conexão com o boneco/objeto manipulado.
Esta
conexão, o contato entre animador e objeto animado, pode ser mais profunda se
estimularmos a percepção do tato, como perceber o material que constitui um
objeto/boneco. Para este estímulo, tenho proposto a partir do Sistema
Esquelético, em reconhecer as nuanças e texturas das camadas do osso através de
um refinamento do toque.
O Toque é um dos princípios de experiência que Bainbridge nos propõe, o
toque/respiração celular, por exemplo, é um toque base, que uso para introduzir
todos os outros toques propostos pelo BMC para as diferentes estruturas de cada
sistema anatômico.
O toque celular
é o toque da presença, o
toque do não fazer, onde o corpo recebe a informação, não como vinda de fora,
mas como um novo olhar sobre si mesmo, uma comunicação celular percebida como
um estado de presença estendido, ampliado de suas próprias células, a percepção
de unidade com o outro.
Estabelecer
uma comunicação a
partir do tato, é um
refinamento da escuta dos corpos, do próprio corpo para perceber o corpo do
outro, do corpo do outro para perceber a si próprio. Comunicação que não se restringe à uma parte localizada do toque,
mas à percepção de
como ele reverbera em todo corpo, em ambos os corpos. Outro princípio básico, quando tocamos alguém, nós
também somos
tocados, inevitavelmente. Tocar é uma
via de mão dupla.
Descrevo
aqui alguns comentários de alunos, após uma aula que envolveu: respiração celular, toque/respiração
celular, toque para a diferenciação das três camadas do osso, percepção das
articulações.
“Eu sentia muito o ressoar o toque da pessoa,
até quando ela já tinha passado eu ainda sentia, e você começa a prestar mais atenção onde estão suas
tensões. É interessante você
perceber o outro te percebendo, e você perceber o outro e te perceber
percebendo. O ressoar do toque do outro ficou martelando quando fui pegar no
boneco, eu parei mesmo pra pensar enquanto estrutura, pra sentir ele enquanto
estrutura, pra tocar e ser tocado pelo boneco; As vezes a sensação que a gente
tem do próprio corpo não
é exatamente o que o corpo é; Eu nunca tinha pensado o quanto é fundamental
trabalhar o corpo, a percepção, pra trabalhar com o objeto.” (Alexandre Reis, bonequeiro, ator e diretor.)
“Eu fiquei pensando o estado de presença
que você alcança, trabalhando por exemplo, o que vc trouxe inicialmente, a
respiração. Eu estava manipulando o boneco e estava realmente fazendo isso, se
eu não tivesse feito este exercício antes, talvez eu tivesse pensando em outra
coisa. E conhecer a própria articulação e brincar com a do boneco, você amplia
as possibilidades de jogo.” (Panmella Ribeiro,
atriz e contatista)
Este foi um
workshop de dois dias de duas horas, e fazia parte da 8a Mostra de Teatro de
Bonecos realizada pela Cia. Navegante em Mariana/MG. Pude emprestar de Catin
Nardi, diretor da cia e da mostra, alguns bonecos de manipulação direta
(manipulação que se faz tocando diretamente o boneco, que normalmente necessita
de três manipuladores para um só boneco).
Após a
primeira hora de trabalho de corpo com princípios do BMC, com o foco no Sistema
Esquelético, improvisamos com o boneco. Manipular um mesmo boneco em três,
exige muita sincronicidade e fiquei de fato, impressionada e feliz com o
resultado de tão poucas horas. As partituras de movimento tinham precisão e
fluidez, havia clareza e limpeza nos gestos, manipuladores e bonecos presentes.
No último
dia, ainda propus um experimento, cada trio escolhia uma camada do próprio osso
para estar com ela (periosteo ou osso compacto ou tutano), para
conectar-se enquanto manipulava o boneco repetindo a partitura de ação
já estabelecida. Relataram que foi um pouco complexa manter a atenção dentro
(no próprio osso) e fora (boneco), mas foi muito interessante perceber o
resultado, havia diferença, mudava a qualidade do movimento e a
presença, e foi apenas um exercício de oficina.
Deste
experimento, o artista pode escolher
qual qualidade é mais interessante para tal personagem, ou tal partitura
de movimento, e a partir de um trabalho já desenvolvido no nível da pré-expressividade, um suporte
interno para chegar na qualidade desejada, suporte de um Sistema, de uma camada
deste sistema, como por exemplo, escolher o Sistema Esquelético e dentro deste
sistema a camada interna do osso, o tutano.
Para uma cena específica em uma residência artística em que a Tato foi convidada para a
orientação corporal num processo criativo, em que contribuímos na construção da
dramaturgia física, com técnicas
do teatro de animação e utilizei também os princípios do Body - Mind Centering® , convidei um dos atores para um processo
individual, em que utilizei o Padrão (PNB) Mouthing (boca-oral).
Este Padrão
nos dá a primeira percepção de verticalidade no corpo através do sistema
digestório, a relação boca- ânus, a boca como a extremidade que alcança a
cabeça no espaço, que busca, o sentido com o qual começamos a perceber o mundo.
Estávamos
com dificuldade em definir a movimentação de uma cena, em que o ator tinha que
tirar a máscara e a roupa/túnica que o cobria, e abaixo ele era uma drag
queen que
dublava um texto que satirizava uma passagem da Bíblia, esta cena era um
recorte na dramaturgia que
utilizava o texto Oración, de Fernando Arrabal.
Havia muitos movimentos e ainda estava muito
artificial. A relação boca-ânus, deu um foco pra boca que trazia certa
sensualidade enquanto dublava,
e ele mantinha uma verticalidade a partir de um suporte interno que vinha desde
o ânus, e o personagem precisou de pouca
movimentação para dar a carga que pedia a cena.
Alguns meses
após a estreia, numa segunda temporada da peça,
escrevi para o ator e perguntei como foi a apresentação e esta cena em
específico, se ainda fazia sentido o trabalho que havíamos feito, ele
respondeu:
"
Então, posso dizer que o trabalho boca
ânus é a
espinha dorsal da personagem, ele além de estímulo motor é a percepção corporal da personagem, algo
que se aciona nestes dois pontos põe o meu corpo no registro dela. Por isso que
digo que quanto mais eu firmar esta base mais eu conseguirei a periferia da
personagem, mais ela se tornará fluida." (Nícolas Torres Lopes, ator da Cia. Repertório, de
Vitória - ES)
São tão
diversos os caminhos que o corpo nos possibilita e o Body - Mind Centering® não
nos oferece uma resposta de qual devemos seguir, não é um método, é uma abordagem e aborda o corpo
como um universo de possibilidades, nos oferece meios de conhecer e reconhecer
cada estrutura em nós mesmo e assim no corpo do outro.
Vale a pena
lembrar que este é o
olhar HOJE do meu corpo agora e dos corpos com os quais tive contato. Daqui há
anos, meses ou até mesmo
dias, as palavras já seriam outras, pois mesmo repetindo a experiência, o material pesquisado – o corpo vivo
– nunca
será o mesmo. Devido
à qualidade
tácita que a vivência somática nos proporciona, estas
são apenas
tentativas em
palavras de expressar
a experiência
vivida.